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Arte pra cego ver
Por meio de artefatos criados por estudantes, deficientes visuais poderão conhecer obras de grandes artistas pernambucanos
Por meio da argila, pessoas com deficiência visual poderão ver obras de grandes artistas pernambucanos. Ou melhor senti-las. Esse é o objetivo dos estudantes da disciplina modelagem em argila, do curso de Artes Visuais do IFPE Olinda, que transformam aprendizagem em um caminho para inclusão. Toda semana, eles vão para aula recriar em placas de argila obras de mestres como Samico, J. Borges, Lula Cardoso Ayres, Vicente do Rego Monteiro e Tereza Costa Rêgo. Telas e gravuras são traduzidas em relevos, volumes e texturas que podem ser lidos ou tateados pelos deficientes visuais. Eles criam mais que uma artefato mediador de inclusão, constroem repertório, desenvolvem paciência, aprimoram técnicas e mergulham profundamente nas obras para revelar sua superfície.
Esse mergulho é exigido para quem se propõe a dar visão ao outro que não pode enxergar. Traduzir uma obra de arte é uma tarefa que envolve além de habilidade manual, foco, disciplina e sensibilidade. Cada estudante trabalha com apenas uma obra desde o primeiro dia de aula. Semanalmente, eles estudam todos os detalhes do trabalho escolhido para, então, dar-lhes sentidos. “Queremos que o deficiente visual, auxiliado pela audiodescrição da peça, tateie o objeto para poder sentir a imagem. Queremos ajudar a ver a imagem que está num quadro ou numa gravura”, explica a professora Luciene Pontes, que idealizou o projeto.
Como representar planos? Como representar uma cor para quem não enxerga? A professora explica que cores são representadas por texturas, por exemplo, que serão informadas na audiodescrição. Além de confeccionar a placa, os estudantes têm que escrever o texto que será transformado em áudio, criando um caminho para a compreensão, usando códigos que os cegos sabem bem operar. “É um grande desafio que propus e eles aceitaram. No início, não gostaram, mas depois passaram a amar”, conta a professora.
A fala dela ilustra bem o caso do estudante Mauro Melo, que a princípio resistiu à ideia. “Agora, eu amo essa atividade. Descobri que consigo desenvolver habilidades que eu sequer imaginava. Tive que aprender muita coisa ao mesmo tempo. Prestar atenção em cada detalhe, com a intenção de transmiti-lo para outra pessoa”, revela. Ele que trabalha com a tela Maternidade do artista Vicente de Rego Monteiro se esforça para ir além da técnica. “Fiquei apaixonado pela tela, por expressar muita feminilidade e maternidade. Essa energia que está na obra também está na argila, de algum modo”, lembra, enfatizando o elemento terra como símbolo da mãe natureza. Mauro, assim como os demais estudantes, aprendeu a ler a obra. “Você só consegue realizar a atividade se apreender a obra”, assegura a professora.
A expectativa da turma é de que as placas, algum dia, possam servir como objetos de mediação em museus. Até lá, há um caminho de experimentação a ser percorrido. As peças ainda serão testadas. Primeiramente, estudantes de outra turma, que também confeccionam placas para disciplina de modelagem em argila, tatearão as placas com olhos vendados, auxiliados pela audiodescriçao. Baseados nesses resultados, a turma vai ouvir a opinião de pessoas com deficiência visual que entrarem em contato com as placas.
PACIÊNCIA PARA O TEMPO DA ARGILA
Para realizar o trabalho, os estudantes precisam ainda compreender argila, que tem seu próprio tempo. Essa compreensão só é conquistada com paciência. As mãos que modelam devem lidar com o ponto de quebra e efeitos de adição e subtração, características do material. “Temos que modelar num tempo bem específico. Sem paciência não conseguimos trabalhar textura. Se a gente coloca muita água na placa, corremos o risco de estragar tudo. É um desafio que possibilita o nosso desenvolvimento”, explica o estudante Tarcisio da Silva Ferreira.
A paciência é necessária ainda para encarar toda semana o mesmo trabalho que começou a ser desenvolvido no início do semestre. Isso para uma turma predominantemente jovem. “A juventude é muito imediatista. Nos tempos de redes de sociais, somos todos imediatistas. Queremos resolver as coisas logo. A argila tem o tempo dela. Se há muito calor, há evaporação e o trabalho se transforma num exercício de paciência”, explica a professora. Para esse exercício, é preciso também articular conhecimentos de outras disciplinas, como Elementos da Linguagem Visual.
NÃO É ARTE, É UM CAMINHO
O início da atividade foi acompanhado por discussão sobre a prática. Os estudantes queriam que seus trabalhos fossem vistos como artísticos. Entretanto, a professora deixa claro de que não se trata de uma obra de arte, mas de um artefato mediador. “Trabalhamos com cópia, com recriação, mas nada impede que eles possam realizar obras autorais”, explica Pontes.
A escolha da placa também foi feita com base no mercado. O material tem boa aceitação e pode virar fonte de renda para quem já aprendeu a arte de modelar até visões. Uma modelagem longe de ser limitadora. Ao contrário, oferece possibilidades de enxergar o que só arte proporciona.