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IFPE divulga nota contra projeto de lei que impõe medidas arbitrárias ao uso da língua portuguesa

O projeto em questão foi protocolado pelo vereador Thiago Paes, na Câmara Municipal de Garanhuns


O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE) repudia a tentativa de ataque a sua institucionalidade e às liberdades democráticas que se desenha por  meio do Projeto de Lei que “Estabelece medidas protetivas ao direito dos estudantes do município de Garanhuns – PE ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e orientações legais de ensino, vedando as instituições públicas e/ou privadas de ensino, o uso de novas formas de flexão de gênero de palavras da língua portuguesa em contrariedade as regras gramaticais estabelecidas” (texto original), protocolado pelo vereador Thiago Paes, na Câmara Municipal de Garanhuns.

De início, é importante informar que o projeto em questão é, antes de tudo, inconstitucional, uma vez que objetiva estabelecer a censura, contrária à ordem democrática, além de invadir matéria legislativa da União para estabelecer normas gerais sobre educação. Opõe-se, ainda, à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), que prevê, em seu Art. 3, os seguintes princípios da educação: “I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância”.

Afora o fato de o mencionado projeto de lei não dialogar com a autonomia de cátedra, não há justificativa alguma de natureza linguística que embase a referida proposição. Esta serve unicamente aos anseios de ataque aos debates democráticos relacionados aos estudos de gênero e de sexualidades, travados nas ciências sociais e em diversos campos do saber. No que concerne aos argumentos linguísticos, esclarece-se que as línguas são organismos vivos, em constante transformação e atentos aos movimentos da realidade. Se há uma concepção grandemente partilhada entre os estudiosos da Linguística é justamente a de que a língua muda. Cabe salientar que pensar isso não constitui novidade alguma, haja vista estudos como o Curso de Linguística Geral, que data de 1916, por exemplo.

Especificamente em relação ao Português Brasileiro, Marcos Bagno, linguista renomado no cenário nacional, doutor em filologia (que corresponde, grosso modo, ao estudo da linguagem em fontes escritas), afirma que “esse português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade” (BAGNO, 2007, p. 16, grifo do autor). Em sua obra Preconceito Linguístico – o que é, como se faz, que contou com 55 reedições de 1999 até 2013, em linhas gerais, Bagno constata a existência de variedades linguísticas no Português Brasileiro e considera legítimas, dignas de respeito, todas elas. Vale salientar-se que, conforme atesta o autor, as mais variadas formas de preconceito “não têm nenhum fundamento racional, nenhuma justificativa, […] são apenas resultado da ignorância, da intolerância ou da manipulação ideológica” (BAGNO, 2007, p. 13).

Diante disso e em respeito aos estudos que vêm sendo desenvolvidos nos mais diversos campos da Linguística, a gramática normativa não pode ser usada como justificativa para censurar ou para desrespeitar diferenças linguísticas. A mutabilidade da língua, em todas as suas dimensões, não pode, portanto, ser alvo de censura. A propósito, no que diz respeito ao que se tem compreendido como linguagem neutra, “para Heloisa Buarque de Almeida, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre os Marcadores Sociais da Diferença (Numas), a demanda por uma linguagem inclusiva pode ser considerada um movimento social e faz parte da evolução da língua. ‘É interessante entendermos isso como um movimento social e de transformação. A sociedade está sempre em transformação. Há discursos conservadores que acham que as coisas são fixas, mas não é assim e nunca foi’.” (OLIVEIRA, 2021, on-line).

Logo, o que se percebe é que o uso de um possível gênero neutro na linguagem, embora não previsto na gramática normativa nos termos do uso que se tem visto atualmente, trata-se de um movimento que vem ocorrendo em diversos cenários, sobretudo nas redes sociais, e se configura como uma tentativa de evitar o uso do masculino genérico.

Acerca disso, é válido enfatizarem-se as seguintes questões:

1. a linguagem neutra, também chamada linguagem inclusiva, não é uma nova norma, mas apenas a tentativa de, através da língua, reconhecer-se a existência de uma parcela da sociedade historicamente invisibilizada, excluída inclusive dos espaços educacionais;

2. afirmar-se que instituições de ensino estão trabalhando a linguagem neutra como parte do conteúdo programático da disciplina Língua Portuguesa é, antes de tudo, leviano, uma vez que a eventual utilização desses elementos da linguagem neutra em troca de mensagens com estudantes não corresponde à parte do conteúdo escolar (apenas aponta para a tentativa de reconhecimento e respeito à existência de todas as pessoas presentes no ambiente escolar, o que não agride quem quer que seja, pelo contrário, inclui e agrega);

3. dizer que não há pesquisa científica em relação aos estudos da linguagem que reconheçam a condição de mutabilidade da língua é, no mínimo, um desconhecimento absurdo acerca do que se vem produzindo nesta área do saber, pelo menos nos últimos 100 anos.

Quanto à linguagem neutra, tampouco se pode negar que estudos venham sendo realizados. Exemplos podem ser citados, como o Sobre o gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico, de Luiz Carlos Schwindt, publicado em 2020 na maior revista de estudos linguísticos do país, a Revista da ABRALIN (Associação Brasileira de Linguística) e a Dissertação submetida pelo pesquisador Guilherme Ribeiro Colaço Mäder, em 2015, ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, intitulada Masculino Genérico e Sexismo Gramatical. Esta chama atenção para o componente ideológico que permitiu à Língua Portuguesa utilizar o gênero masculino como aquele que linguisticamente generaliza, por supostamente indicar “o gênero humano” (ao contrário do que havia na Língua Latina, da qual se originou o Português, já que nesta havia o feminino, o masculino e o neutro). Em síntese, existem estudos científicos na área, mas não há uma introdução dessas pesquisas em termos de conteúdo programático na educação básica, pois as mudanças linguísticas passam por um longo e lento processo até que sejam reconhecidas e incorporadas à gramática normativa, utilizada para nortear o trabalho com as normas linguísticas no espaço escolar.

Nesse sentido, o IFPE apoia a autonomia de seus docentes e vem sendo coerente com sua missão institucional, que consiste em “promover a educação profissional, científica e tecnológica, […] comprometida com uma prática cidadã e inclusiva, de modo a contribuir para a formação integral do ser humano […]” (IFPE, 2015, p.28). A qualidade desse trabalho, vale salientar, vem sendo reconhecida não apenas pela comunidade acadêmica, mas confirmada pelos resultados obtidos no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), no qual o IFPE – Campus Garanhuns, por exemplo, na edição de 2019, obteve o 1º lugar entre as escolas públicas e privadas do município e a 8ª posição entre as instituições de ensino públicas do estado de Pernambuco.

Assim, com base na inconstitucionalidade do referido projeto de lei e na ignorância científica dos argumentos por ele apresentados, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco espera que esse projeto seja sumariamente arquivado, uma vez que o objetivo da proposição é, na realidade, reforçar a perseguição a grupos historicamente marginalizados, visto que não há qualquer razão do ponto de vista da ciência linguística que o sustente. Por fim, o IFPE rejeita o ataque e a tentativa de censura a esta instituição pública de ensino, que tem cumprido seu papel de modo louvável junto à sociedade.

 

José Carlos de Sá

Reitor do IFPE 

 

REFERÊNCIAS: 

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico – o que é, como se faz. 49 ed. São Paulo: Loyola, 2007.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE PERNAMBUCO. Conselho Superior. Resolução nº 57, de 15 de dezembro de 2015. Aprova o Plano de Desenvolvimento Institucional do Instituto Federal de Pernambuco 2014-2018. Recife: IFPE, [2015b]. Disponível em: https://portal.ifpe.edu.br/o-ifpe/conselho-superior/resolucoes/resolucoes-2015/resolucao-57-2015-aprova-o-plano-de-desenvolvimento-institucional-do-ifpe.pdf.

OLIVEIRA, Kaynã de. Linguagem neutra: movimento social e parte da evolução da língua. Revista Planeta. Disponível em https://www.revistaplaneta.com.br/linguagem-neutra-movimento-social-e-parte-da-evolucao-da-lingua/. Acesso em 24 fev. 2021.

MÄDER, Guilherme Ribeiro Colaço. Masculino genérico e sexismo gramatical. 2015. 159 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Florianópolis, 2015.

SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. Tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes, Isidoro Blikstein. 25 ed. São Paulo: Cultrix, 1999.

SCHWINDT, Luiz Carlos. Sobre o gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico. Revista da ABRALIN, v. 19, p. 1-23, 2020.

 

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